segunda-feira, 30 de junho de 2014

coisas simples

A Paixão Grega

Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega


Herberto Helder

doping



Angel Olsen - Stars

quinta-feira, 26 de junho de 2014

coisas simples

We the mortals touch the metals,
the wind, the ocean shores, the stones,
knowing they will go on, inert or burning,
and I was discovering, naming all the these things:
it was my destiny to love and say goodbye.


Pablo Neruda, "XV", em Still Another Day.

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The Orwells - Southern Comfort

terça-feira, 24 de junho de 2014

coisas simples

nós temos tudo.

nós não temos muito dinheiro: não vamos a restaurantes, compramos marca branca, roupa na primark. não temos iphones, nem plasmas, nem bimby. nunca comemos bifes do lombo. temos um carro que às vezes não pega. nas férias vamos às praias da caparica. vendemos o que já não precisamos para ganhar algum. tentámos emigrar para não estarmos sempre a contar tostões. nunca conseguimos poupar: nunca sobra nada. houve meses piores: em que um pacote de fraldas fazia diferença nas contas. em que adiávamos as contas da luz para o mês seguinte. mas as coisas vão correndo bem, vão andando: e às vezes compramos frango assado para o jantar. um brinquedo novo para eles. entradas no oceanário. caracóis e gelados na esplanada. o nosso frigorífico tem sempre comida. eu faço um bolo todas as semanas. vivemos bem: não sinto falta de nada.
em abril ele foi despedido.
chegou a casa: abraçou-me. pediu desculpa. disse-me: fui despedido.
disse-lhe que ia correr tudo bem, que iamos arranjar trabalho: ele, eu. eu ia servir às mesas outra vez. a maria e o miguel dormiam a sesta na nossa cama. conseguiamos vê-los: um sono já leve. vi na cara dele o medo de não ter o que lhes dar: um brinquedo novo. gelados na esplanada. uma bolacha. um medicamento. uma sopa. encostado à parede ele chorou enquanto eu lhe limpava as lágrimas.

ele começou a trabalhar este mês.
foram semanas difíceis: ele a adaptar-se a estar sempre em casa connosco. eu e eles a adaptarmo-nos a estar sempre em casa com ele. às vezes mais nervosos porque os dias passavam. às vezes mais deprimidos porque os dias passavam. às vezes com medo porque os dias não paravam de passar. é mais difícil do que se pensa: lidar com isto foi difícil.
mas passou: ele começou a trabalhar. correu tudo bem. tivemos sorte.
eles não sentiram falta de nada.

estava a pensar em todas estas coisas quando vi um apelo: uma família em dificuldades. o pai desempregado, a mãe, um filho, uma menina como a maria. pediam alimentos. pensei que podiamos ajudar. não acredito em deus: naquele momento apeteceu-me agradecer-lhe este novo trabalho. expliquei à maria o que íamos fazer: iamos comprar comida para uma menina como ela. e ela ajudou-me a colocar as coisas no cesto enquanto dizia: massa para a menina. arroz para a menina. leite para a menina. cereais para a menina. disse-lhe que se ela quisesse também podia dar um brinquedo dela à menina. quando chegámos a casa ela correu para o quarto para o escolher.
sozinha na cozinha passei os alimentos para um saco grande: a massa, o leite, o feijão, o arroz. lembrei-me que não tinha arroz agulha na minha despensa: tinha carolino, arroz de risotto, basmati, integral. não tinha agulha. guardei um dos 4 pacotes na minha despensa.
a maria apareceu à minha frente com a carolina na mão: queria dá-la à menina. perguntei-lhe se tinha a certeza. se não ia sentir falta dela: era a única boneca que ela tinha com cabelo. ela pediu durante meses um bebé com cabelo. ela disse que tinha a certeza: queria dá-la à menina: meteu-a no saco.
fui espreitar o miguel: dormia aconchegado, enrolado nos meus lençóis que cheiravam a amaciador. estava a ficar melhor da gastroenterite: dei-lhe tudo o que ele precisava nesses dias: medicamentos para as cólicas, peito de frango cozido, papa de arroz, bananas e puré de maçã, torradas com compota. não lhe faltou nada. beijei-o na testa: deixei-o dormir.
fiz uma chávena de café, cortei uma fatia do bolo que fiz naquela semana e sentei-me no sofá de 4 lugares a ver um dos 74 canais que nunca vejo. quando olhei para o lado vi a maria: estava a brincar com a carolina. perguntei-lhe se já não a queria dar. ela respondeu-me que sim, que a queria dar. estava a brincar com ela porque "às vezes vou ter saudades dela e ela vai ter saudades minhas". eu não respondi: sorri: olhei para a televisão.
à minha frente sempre: a maria. para lá e para cá. parou: com as mãos nos meus joelhos disse-me "sabes mãe, a carolina é a única que tem cabelo, mas este bebé tem dentes, este tem chapéu, este tem uma banheira e este fala.": atrás dela alinhados no chão: 4 bonecos. ela tinha um sorriso no rosto enquanto apontava para eles. "vês?"-perguntou. vi. vi: carolino, risotto, basmati, integral.
levantei-me envergonhada. eu não sou uma pessoa egoísta, a sério que não. mas senti-me a maior, a pior das egoístas: senti-me mal. mais pequenina do que ela, que com 3 anos já é tão grande. disse-lhe que sim, que via. disse-lhe que ela tinha razão. chamei-me nomes enquanto tirei o arroz agulha da minha despensa e o coloquei no saco: a carolina já lá estava outra vez.
às vezes digo que os meus filhos me mudam todos os dias, me ensinam coisas: grandes lições.
uma vez uma amiga que ainda não é mãe perguntou-me: a sério? tipo o quê?
tipo isto, "vês?".


eu, ele, a maria e o miguel, aqui

coisas simples



Jim Carrey

lambarices

“We are wolf and fire and shades of sunset.
I have watched the sky bleed out over your hands
and kissed your sorry cheeks and the downward slope
that rounds off your mouth and four hours from the end
you swung your legs out of bed and found your shirt—
when they ask me what became of the first person
I got bold enough to love I’ll draw them
rising crescent moons and empty cloudy beaches;
talk about distant galaxies and looming constellations.
An entire universe inside your eyes and I
was not equipped to be even its smallest star.”


elisabeth hewer

doping



Daughter - Home

sexta-feira, 20 de junho de 2014

deixa-te estar

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.


Herberto Helder, Poesia Toda, excerto do poema Tríptico

quinta-feira, 19 de junho de 2014

novos vícios



The Preatures - Is This How You Feel?

lambarices

O Quadrante

Nas mãos do anjo, o mostrador das obras
Humanas
Continua a medir a eternidade
Da nossa transitória duração...
Divino e tolerante,
O coração,
Que por debaixo da sagrada lousa
Palpita,
Com infinita
Paciência
E compaixão,
Deixa-nos avaliar, como podemos,
A sombra que fazemos
No chão...


Miguel Torga, Diário V

segunda-feira, 16 de junho de 2014

para fazer o truca-truca



Chet Faker - Talk Is Cheap

lambarices

«My dear Frankie Foo,

It’s your dad. I’m writing from a time, 2014, when believe it or not, I do not embarrass you. Seriously, you can’t get enough of me. When I come home from work, the moment the front door creaks open, I hear you and your brother with a cautious “…Daddy?”, and when I confirm that it is indeed me, an immediate “DADDY!!!!!” followed by the sound of a thousand horses stampeding across hardwood floors. (How do the two of you make so much noise? Do you each have nine cloven, hooved legs that immediately retract from human view when rounding corners into rooms?). Every time I see you, something very specific happens — my heart explodes. Every time. Without fail. And when you see me, you light up. Literally I think there must be fireworks behind those eyes of yours because I’m blinded by it and everything else disappears and you run over and wrap yourself around me so tight and I’m home. Did that just embarrass you? Sorry.

Here’s the thing though: I don’t think I’ll ever be able to keep my cool around you. I’m simply far too happy to know you. You choreograph dance routines for you and I. You belt out Let It Go for an audience of one: me. So, I’ve decided to just lean into it and be a generally embarrassing presence in your life. That’s right, I’ll never try to be the “cool dad” — I think we both know how much that would exacerbate whatever embarrassment was there in the first place.

So we’ll see how it goes. And when that day comes when those fireworks in your eyes fade and you cringe rather than squeal when I walk into a room, rest assured — I get it. I’ll even try to play it cool right along with you. But just know that my heart is exploding, over and over again.

P.S. - Please never say “cool beans.”»


Adam Scott

quinta-feira, 12 de junho de 2014

para dormir de um sono só



The National - This Is The Last Time

lambarices

Disseste-me, um dia, devagar

Disseste-me, um dia, devagar -
porque as coisas óbvias
levam o seu tempo -
que não existiria nenhum dia,
por mais pequeno que fosse
que a terra não pudesse devorar.

Tu choravas, como sempre fizeste
quando vias os outros nascer.

Quando te pariu, apesar disso,
a tua mãe enxugou-te exausta
com pena de teres vindo ao mundo,
assim como estavas. Ou nua.

Hoje quando me falas a tua nudez
envelheceu. Tornou-se minha,
partilhada ou desentendida
como as árvores que caem.

E porque espero eu que ainda digas,
passado todo este tempo,
que não sabes do que falo?

Um dia haverei de descobrir,
cedo demais, imagino,
que a tua pessoa não tem sítio,
e é quase mais certa do que eu.

Por isso, não me engano,
se te digo que quando te calas
sei que um dia e uma noite
são o mesmo deus.


Pedro Braga Falcão, Poesia

quarta-feira, 11 de junho de 2014

doping (ou quartas que são segundas que afinal são uma espécie de quinta)



The War on Drugs - Under the Pressure

lambarices

Ali,
debruçada no tanque, cantavas para dentro a canção
das raparigas tristes,
arrancadas à mocidade,
como os malmequeres frescos, na jarra da avó, sobre
a mesa.
Meu filho,
meu enigma azul dos céus do sul, dizias.
Tanta ternura, tanto mel coado,
dourado,
exposto a um vendaval de chamas súbitas.
Como procurar-te agora, na eternidade das cinzas,
entre as raízes que ainda sangram.
Como ver-te, uma vez mais,
reencarnada em jovem noiva traída pelo mar, junto
às mulheres de luto.
Eras a lenta rotação das tardes,
e pelas tardes descias a montanha e depois chegavas
ao vale da sombra.
Cantavas,
para que eu adormecesse enfim, apertando nos braços
uma estrela,
cantavas a canção das raparigas tristes de uma ilha.
Minha mãe,
é contigo que falo,
depois de ponderadas as distâncias que vão de um
berço a uma lápide,
depois de ouvir os pássaros,
chamando por mim,
interrompendo-se bruscamente,
quando a minha respiração os sobressaltava,
sem saberem que no meu peito já pouco ar o
percorria.


José Agostinho Baptista, Caminharei pelo Vale da Sombra, 2011

segunda-feira, 9 de junho de 2014

doping (ou segundas que são sextas)



DNA - The Kills

lambarices

É a prata da minha amada.
Dir-lhe-ei docemente adeus,
e que não arranque os espinhos da primeira rosa,
subindo pela vida.
E quando eu caminhar pelo vale da sombra,
ela descerá ao pequeno porto, descalçando as sandálias,
mergulhando no mar,
repetindo os nomes de todos os que partiram,
de todos os que a amaram,
hesitando à entrada da taberna,
vendo o meu lugar vazio, o violino sobre a mesa, um
silêncio maior que a lentidão das praias,
e pensará em tudo, em cada som, em cada lágrima, em
nada.
Ela voltará as costas.
Nunca fomos deste mundo, dir-lhe-ei por fim, ao fechar
a última porta.



José Agostinho Baptista, Caminharei pelo Vale da Sombra, 2011

sexta-feira, 6 de junho de 2014

doping e bom fim-de-semana



Nick Drake - Place to be

lambarices

O Terceiro Corvo

Oh Lisboa
Como eu gostava de ser
O terceiro corvo do teu emblema
Estar implícita na tua bandeira
Negra e branca
Como tinta e papel
Como escrita e espaço!

Ser teu desenho
Tua nova lenda
Invenção deste século
Que já não inventa
E se interroga:
Donde vieram estes corvos?

Como tu, Vicente,
Eu também não sou de cá
Não sou daqui
Não pertenço a esta terra
E talvez nem sequer
Pertença a este mundo…

Porém estou aqui
Nesta dolorosa praia lusitana
Cheia de um tumulto inútil
Que enegrece as tuas areias
E polui o ventre do rio
Que os golfinhos há muito desertaram

E olhando as nuvens dedilhadas pelo vento
Sentindo a terna dor do teu sentir sentido
Peço-te, Lisboa
Surge de novo bela
Reinventa
A santidade perdida do teu emblema


Ana Hatherly, "Itinerários", 2003

coisas simples



Jathan Muhar's Graduation

quarta-feira, 4 de junho de 2014

para dormir (literalmente) de um sono só



Rodrigo Amarante - Fall Asleep

lambarices

Viagem

No metropolitano ao fim do dia
viajam caras que se movem dentro
do futuro; procuro
entender o que as faz cegamente avançar
em direcção à morte natural
como se, adolescentes, as criasse
ainda o mundo para o uso dúbio
dum ser abstracto a que chamamos tempo


Gastão Cruz, A Moeda do Tempo, 2006