quarta-feira, 11 de junho de 2014

lambarices

Ali,
debruçada no tanque, cantavas para dentro a canção
das raparigas tristes,
arrancadas à mocidade,
como os malmequeres frescos, na jarra da avó, sobre
a mesa.
Meu filho,
meu enigma azul dos céus do sul, dizias.
Tanta ternura, tanto mel coado,
dourado,
exposto a um vendaval de chamas súbitas.
Como procurar-te agora, na eternidade das cinzas,
entre as raízes que ainda sangram.
Como ver-te, uma vez mais,
reencarnada em jovem noiva traída pelo mar, junto
às mulheres de luto.
Eras a lenta rotação das tardes,
e pelas tardes descias a montanha e depois chegavas
ao vale da sombra.
Cantavas,
para que eu adormecesse enfim, apertando nos braços
uma estrela,
cantavas a canção das raparigas tristes de uma ilha.
Minha mãe,
é contigo que falo,
depois de ponderadas as distâncias que vão de um
berço a uma lápide,
depois de ouvir os pássaros,
chamando por mim,
interrompendo-se bruscamente,
quando a minha respiração os sobressaltava,
sem saberem que no meu peito já pouco ar o
percorria.


José Agostinho Baptista, Caminharei pelo Vale da Sombra, 2011

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