sexta-feira, 31 de maio de 2013
lambarices
Marcha fúnebre (lado B)
É difícil, sim,
conhecer a luz e falhar a sombra.
Tão difícil como beber apenas
uma cerveja e falhar a palavra
apenas
por não gostar de tremoços.
É difícil não termos sido amigas
na adolescência, mas eu nunca tive amigos
adolescentes,
mesmo os que diziam que eram
mentiam: tinham centenas de anos.
É difícil nunca ter ido em grupos,
nunca ter ido às putas, ter ficado
sempre aqui,
aqui assim,
de coração encostado ao verso,
de língua debaixo da linha.
É difícil, sim,
cair no abismo e descobri-lo afinal
sítio confortável. Como é difícil
ler Celan e Pina,
Herberto e Belo,
Szymborska e Clarice,
e acreditar que a fé
se torna intermitente
sempre aqui,
aqui assim,
entre a saliva e os dentes.
É difícil, por isso,
pisar a madeira,
e esperar que a tábua ranja no sítio certo
da memória.
Tão difícil como o próximo copo ser a única esperança.
Menos difícil porém
do que ter sido mãe
órfã de pai, avós e gatos,
órfã rodeada de órfãos
por todos os lados. Água
rodeada de mar por todos os lados.
É difícil cumular factos:
ter sido eu
a ensinar-te a ler aos 50 anos,
ter sido eu
a falhar-te a leitura da morte aos 90 anos,
ter sido eu
a sobreviver-te, sobrevivente aos 30 anos.
Ter sido eu:
tão difícil quanto ser árvore
quando o tempo não está para colheitas.
Tão difícil quanto ter
medo de cães,
alergia a gatos,
e restar:
uma andorinha para caçar.
É difícil, enfim, sonhar
que a cerveja se bebeu
na companhia do poeta.
Como é difícil acreditar que o poeta perdeu
na carruagem os poemas. E os poemas
sempre aqui,
aqui assim,
rentes ao chão. Apenas.
Gostaria – muito, tanto – de.
Gostaria assim – com gestos largos –
assim tanto de: acreditar que
tudo isto tem banda sonora.
Porém:
para fazer uma canção,
tudo isto trespassado pelo som não chega.
Não chega, não.
É difícil, sim.
Inês Fonseca Santos
É difícil, sim,
conhecer a luz e falhar a sombra.
Tão difícil como beber apenas
uma cerveja e falhar a palavra
apenas
por não gostar de tremoços.
É difícil não termos sido amigas
na adolescência, mas eu nunca tive amigos
adolescentes,
mesmo os que diziam que eram
mentiam: tinham centenas de anos.
É difícil nunca ter ido em grupos,
nunca ter ido às putas, ter ficado
sempre aqui,
aqui assim,
de coração encostado ao verso,
de língua debaixo da linha.
É difícil, sim,
cair no abismo e descobri-lo afinal
sítio confortável. Como é difícil
ler Celan e Pina,
Herberto e Belo,
Szymborska e Clarice,
e acreditar que a fé
se torna intermitente
sempre aqui,
aqui assim,
entre a saliva e os dentes.
É difícil, por isso,
pisar a madeira,
e esperar que a tábua ranja no sítio certo
da memória.
Tão difícil como o próximo copo ser a única esperança.
Menos difícil porém
do que ter sido mãe
órfã de pai, avós e gatos,
órfã rodeada de órfãos
por todos os lados. Água
rodeada de mar por todos os lados.
É difícil cumular factos:
ter sido eu
a ensinar-te a ler aos 50 anos,
ter sido eu
a falhar-te a leitura da morte aos 90 anos,
ter sido eu
a sobreviver-te, sobrevivente aos 30 anos.
Ter sido eu:
tão difícil quanto ser árvore
quando o tempo não está para colheitas.
Tão difícil quanto ter
medo de cães,
alergia a gatos,
e restar:
uma andorinha para caçar.
É difícil, enfim, sonhar
que a cerveja se bebeu
na companhia do poeta.
Como é difícil acreditar que o poeta perdeu
na carruagem os poemas. E os poemas
sempre aqui,
aqui assim,
rentes ao chão. Apenas.
Gostaria – muito, tanto – de.
Gostaria assim – com gestos largos –
assim tanto de: acreditar que
tudo isto tem banda sonora.
Porém:
para fazer uma canção,
tudo isto trespassado pelo som não chega.
Não chega, não.
É difícil, sim.
Inês Fonseca Santos
quinta-feira, 30 de maio de 2013
lambarices
Escreve sempre que precisares
Escreve sempre que precisares de me dizer
que há gelo nas tuas mãos e nas paredes do frigorífico.
Os legumes que trouxe ontem
não sobrevivem a mais do que uma geada,
muito menos nós.
Escreve sempre que precisares, podes
dizer-me outra vez que nunca houve inverno,
que este ano não há verão,
que estamos aqui e não estamos porque não sabemos
se somos nós ou se somos aquelas
quatro pessoas que vão à rua agora,
encontraram a porta certa.
Escreve sempre que precisares, faz
uma lista de compras, uma lista de desejos,
anota todos os pedidos que deixaste
em poemas atrasados.
Escreve sempre que precisares
de mais um postal com selo e carimbo.
Escreve sempre que riscares
na tua agenda mais uma morada.
Sempre que eu precisar vais devolver-me
uma caligrafia rebuscada que não é a tua,
curvas a mais que não fazias na letra d.
Já não há desses manuscritos,
só eu e os carteiros aprendemos a decifrá-los
(e toda a gente sabe que nem isso é verdade).
Vai escrevendo. Sempre que eu precisar,
as frases podem desviar deixas decoradas,
repetidas como as mentiras,
demasiado gastas para serem inócuas.
Escreve em vez de costurares.
Mesmo que soubesses, não há remendos suficientes,
arranhaste sem possibilidade de cura os joelhos,
os cotovelos e as canelas
(dançar sempre foi um antídoto fora do teu alcance).
Escreve que eu vejo nas tuas as minhas quedas,
os meus soluços nessas curvas
a mais que não fazes na letra d:
as tuas linhas são rectas, verticais e justas,
as minhas letras são apenas caracteres.
Escreve sempre que puderes
só em vez de apenas,
recursos humanos em vez de
resíduos urbanos. Talvez sejamos mais
do que pessoas, temos tamanhos diferentes
e não servimos nos lugares que nos foram destinados.
Escreve sempre que precisares de uma porta
onde caibas,
nunca trago chaves comigo.
Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, 2010
Escreve sempre que precisares de me dizer
que há gelo nas tuas mãos e nas paredes do frigorífico.
Os legumes que trouxe ontem
não sobrevivem a mais do que uma geada,
muito menos nós.
Escreve sempre que precisares, podes
dizer-me outra vez que nunca houve inverno,
que este ano não há verão,
que estamos aqui e não estamos porque não sabemos
se somos nós ou se somos aquelas
quatro pessoas que vão à rua agora,
encontraram a porta certa.
Escreve sempre que precisares, faz
uma lista de compras, uma lista de desejos,
anota todos os pedidos que deixaste
em poemas atrasados.
Escreve sempre que precisares
de mais um postal com selo e carimbo.
Escreve sempre que riscares
na tua agenda mais uma morada.
Sempre que eu precisar vais devolver-me
uma caligrafia rebuscada que não é a tua,
curvas a mais que não fazias na letra d.
Já não há desses manuscritos,
só eu e os carteiros aprendemos a decifrá-los
(e toda a gente sabe que nem isso é verdade).
Vai escrevendo. Sempre que eu precisar,
as frases podem desviar deixas decoradas,
repetidas como as mentiras,
demasiado gastas para serem inócuas.
Escreve em vez de costurares.
Mesmo que soubesses, não há remendos suficientes,
arranhaste sem possibilidade de cura os joelhos,
os cotovelos e as canelas
(dançar sempre foi um antídoto fora do teu alcance).
Escreve que eu vejo nas tuas as minhas quedas,
os meus soluços nessas curvas
a mais que não fazes na letra d:
as tuas linhas são rectas, verticais e justas,
as minhas letras são apenas caracteres.
Escreve sempre que puderes
só em vez de apenas,
recursos humanos em vez de
resíduos urbanos. Talvez sejamos mais
do que pessoas, temos tamanhos diferentes
e não servimos nos lugares que nos foram destinados.
Escreve sempre que precisares de uma porta
onde caibas,
nunca trago chaves comigo.
Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, 2010
quarta-feira, 29 de maio de 2013
amor & coisas simples
Marina: Newborn. I open my eyes. I melt. Into the eternal night. A spark. You got me out of the darkness. You gathered me up from earth. You've brought me back to life.
To the Wonder, Terrence Malick
To the Wonder, Terrence Malick
esperança
Numa Europa cultural viciada em muitos preconceitos anti-americanos, o 66º Festival de Cannes não deixou de atrair novas versões de velhos lugares-comuns contra Steven Spielberg, este ano presidente do júri. Com uma ironia mais ou menos habilidosa, sugeriu-se que, afinal, o autor de A Lista de Schindler teria vindo à Côte d’Azur para, de uma maneira ou de outra, tratar dos seus “negócios”. Nada de novo: em 1975, defender um filme chamado Tubarão dava direito a ser acusado de perigosa aliança com o “imperialismo” (este ano, hélas!, Tubarão foi um dos clássicos exibidos nas sessões de cinema ao ar livre, na praia Macé).
Acontece que, com a cumplicidade dos seus magníficos colegas de júri, Spielberg rubricou uma belíssima prova de amor cinéfilo: por um lado, definindo um palmarés que espelha a fascinante pluralidade da selecção oficial (ficaram grandes filmes de fora, mas era inevitável); por outro lado, através da Palma de Ouro para La Vie d’Adèle, consagrando um objecto que, ao abordar uma história de amor entre duas mulheres, não vacila perante o rigor de um realismo muito francês cuja modernidade persiste. Daí que Spielberg tenha dito que a Palma ia, não para o realizador (tradicional consagrado), mas para “três artistas”: Kechiche e as suas duas admiráveis actrizes, Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux. Kechiche recordou, aliás, que este filme o levou descobrir uma juventude que quer e sabe “viver livremente, exprimir-se livremente e amar livremente”.
Como duas figuras angelicais, Adèle e Léa levam-nos a lidar com as máscaras que a sexualidade sempre envolve. Ou seja: numa Europa que todos os dias tolera a violência pornográfica do Big Brother e seus derivados, foi um cineasta de um pudor muito americano que nos veio ajudar a repensar a ética dos nossos olhares.
João Lopes, aqui
Acontece que, com a cumplicidade dos seus magníficos colegas de júri, Spielberg rubricou uma belíssima prova de amor cinéfilo: por um lado, definindo um palmarés que espelha a fascinante pluralidade da selecção oficial (ficaram grandes filmes de fora, mas era inevitável); por outro lado, através da Palma de Ouro para La Vie d’Adèle, consagrando um objecto que, ao abordar uma história de amor entre duas mulheres, não vacila perante o rigor de um realismo muito francês cuja modernidade persiste. Daí que Spielberg tenha dito que a Palma ia, não para o realizador (tradicional consagrado), mas para “três artistas”: Kechiche e as suas duas admiráveis actrizes, Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux. Kechiche recordou, aliás, que este filme o levou descobrir uma juventude que quer e sabe “viver livremente, exprimir-se livremente e amar livremente”.
Como duas figuras angelicais, Adèle e Léa levam-nos a lidar com as máscaras que a sexualidade sempre envolve. Ou seja: numa Europa que todos os dias tolera a violência pornográfica do Big Brother e seus derivados, foi um cineasta de um pudor muito americano que nos veio ajudar a repensar a ética dos nossos olhares.
João Lopes, aqui
terça-feira, 28 de maio de 2013
frases que tinham tudo para dar certo
"Preferes apanhar-me por trás ou pela frente?"
a propósito de uma boleia.
a propósito de uma boleia.
segunda-feira, 27 de maio de 2013
amor & coisas simples
I want to wake up with you
By your side
Watching skies
All through the night
Empress Of - Don't Tell Me
amor & coisas simples
Arrebatada
Eu não quero a ternura
quero o fogo
a chama da loucura desatada
quero a febre dos sentidos
e o desejo
o tumulto da paixão arrebatada
Eu não quero só o olhar
quero o corpo
abismo de navalha que nos mata
quero o cume da avidez
e do delírio
sequiosa faminta apaixonada
Eu não quero o deleite
do amor
quero tudo o que é voraz
Eu quero a lava
Maria Teresa Horta
Eu não quero a ternura
quero o fogo
a chama da loucura desatada
quero a febre dos sentidos
e o desejo
o tumulto da paixão arrebatada
Eu não quero só o olhar
quero o corpo
abismo de navalha que nos mata
quero o cume da avidez
e do delírio
sequiosa faminta apaixonada
Eu não quero o deleite
do amor
quero tudo o que é voraz
Eu quero a lava
Maria Teresa Horta
sexta-feira, 24 de maio de 2013
amor & coisas simples
"a noite tornou-se patética sem ti
não tinha sentido pensar em ti e não sair a correr para a rua
procurar-te imediatamente
correr a cidade duma ponta a outra
só para te dizer boa noite ou talvez tocar-te
e morrer"
Al Berto, «A noite»
não tinha sentido pensar em ti e não sair a correr para a rua
procurar-te imediatamente
correr a cidade duma ponta a outra
só para te dizer boa noite ou talvez tocar-te
e morrer"
Al Berto, «A noite»
quinta-feira, 23 de maio de 2013
amor & coisas (que não são assim tão) simples
You may be sweet and nice
But that won't keep you warm at night
I'm the one who showed you how
To do the things you're doing now
And he may feel all your charms
And he may hold you in his arms
But I'm the one who let you in
I was right beside you then
And once upon a time
You let me feel you deep inside
And nobody knew, nobody saw
Do you remember the way you cried?
I'm your toy, I'm your old boy
And I don't want no one but you to love me
I wouldn't lie
You know I'm not that kind of guy
And once upon a time
You let me feel you deep inside
And nobody knew, nobody saw
Do you remember the way you cried?
And he may feel all your charms
And he may hold you in his arms
But I'm the one who showed you how
To do the things you're doing now
Devotchka - Hot Burrito #1 (I'm Your Toy)
quarta-feira, 22 de maio de 2013
coisas simples
Jenna: I hope that someday, somebody wants to hold you for twenty minutes straight, and that is all they do. They do not pull away. They do not look at your face. They do not try to kiss you. All they do is wrap you up in their arms, without an ounce of selfishness in it.
Waitress
Waitress
terça-feira, 21 de maio de 2013
coisas simples
«And so with the sunshine and the great bursts of leaves growing on the trees, just as things grow in fast movies, I had that familiar conviction that life was beginning over again with the summer.»
The Great Gatsby by F. Scott Fitzgerald
The Great Gatsby by F. Scott Fitzgerald
sexta-feira, 17 de maio de 2013
quinta-feira, 16 de maio de 2013
amor & coisas simples
Alimentar o Amor
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter.
Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores. Criadores não nos faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Valtam-nos guardiões.
É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas — sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue os seres humanos. O nascimento e a morte não têm valor — são os fados da animalidade. Procriar é bestial. O que é lindo é educar.
Estou um pouco farto de revolucionários. Sei do que falo porque eu próprio sou revolucionário. Como toda a gente. Mudo quando posso e, apesar dos meus princípios, não suporto a autoridade.
É tão fácil ser rebelde. Pica tão bem ser irreverente. Criar é tão giro. As pessoas adoram um gozão, um malcriado, um aventureiro. É o que eu sou. Estas crónicas provam-no. Mas queria que mostrassem também que não é isso que eu prezo e que não é só isso que eu sou.
Se eu fosse forte, seria um verdadeiro conservador. Mudar é um instinto animal. Conservar, porque vai contra a natureza, é que é humano. Gosto mais de quem desenterra do que de quem planta. Gosto mais do arqueólogo do que do arquitecto. Gosto de académicos, de coleccionadores, de bibliotecários, de antologistas, de jardineiros.
Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que «salvaguardar»? É fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o amor da minha vida, rapariga de esquerda, a mim, rapaz conservador. É por esta e por outras que eu lhe dedico este livro, que escrevi à sombra dela.
Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar.
Miguel Esteves Cardoso, in «As Minhas Aventuras na República Portuguesa»
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter.
Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores. Criadores não nos faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Valtam-nos guardiões.
É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas — sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue os seres humanos. O nascimento e a morte não têm valor — são os fados da animalidade. Procriar é bestial. O que é lindo é educar.
Estou um pouco farto de revolucionários. Sei do que falo porque eu próprio sou revolucionário. Como toda a gente. Mudo quando posso e, apesar dos meus princípios, não suporto a autoridade.
É tão fácil ser rebelde. Pica tão bem ser irreverente. Criar é tão giro. As pessoas adoram um gozão, um malcriado, um aventureiro. É o que eu sou. Estas crónicas provam-no. Mas queria que mostrassem também que não é isso que eu prezo e que não é só isso que eu sou.
Se eu fosse forte, seria um verdadeiro conservador. Mudar é um instinto animal. Conservar, porque vai contra a natureza, é que é humano. Gosto mais de quem desenterra do que de quem planta. Gosto mais do arqueólogo do que do arquitecto. Gosto de académicos, de coleccionadores, de bibliotecários, de antologistas, de jardineiros.
Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que «salvaguardar»? É fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o amor da minha vida, rapariga de esquerda, a mim, rapaz conservador. É por esta e por outras que eu lhe dedico este livro, que escrevi à sombra dela.
Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar.
Miguel Esteves Cardoso, in «As Minhas Aventuras na República Portuguesa»
quarta-feira, 15 de maio de 2013
coisas simples
I am
a series of
small victories
and large defeats
and I am as
amazed
as any other
that
I have gotten
from there to
here.
«The People Look Like Flowers at Last», Charles Bukowski
a series of
small victories
and large defeats
and I am as
amazed
as any other
that
I have gotten
from there to
here.
«The People Look Like Flowers at Last», Charles Bukowski
terça-feira, 14 de maio de 2013
lambarices
Space Oddity by Chris Hadfield
Na despedida do comando da Estação Espacial Internacional decidiu gravar uma versão do tema Space Oddity. "Com diferenças para o génio de David Bowie, aqui está Space Oddity", escreveu no Twitter. Chris Hadfield já tinha mostrado os dotes musicais poucos dias depois de ter embarcado, a 21 de Dezembro de 2012, tornando-se o primeiro a gravar uma música a bordo da Estação Espacial. Agora Space Oddity tem até direito a videoclip.
toda a história aqui
amor & coisas simples
Vamos ser velhos...
Vamos ser velhos ao sol nos degraus
da casa; abrir a porta empenada de
tantos invernos e ver o frio soçobrar
no carvão das ruas; espreitar a horta
que o vizinho anda a tricotar e o vento
lhe desmancha de pirraça; deixar a
chaleira negra em redor do fogão para
um chá que nunca sabemos quando
será – porque a vida dos velhos é curta,
mas imensa; dizer as mesmas coisas
muitas vezes – por sermos velhos e por
serem verdade. Eu não quero ser velha
sozinha, mesmo ao sol, nem quero que
sejas velho com mais ninguém. Vamos
ser velhos juntos nos degraus da casa –
se a chaleira apitar, sossega, vou lá eu; não
atravesses a rua por uma sombra amiga,
trago-te o chá e um chapéu quando voltar.
Maria do Rosário Pedreira
Vamos ser velhos ao sol nos degraus
da casa; abrir a porta empenada de
tantos invernos e ver o frio soçobrar
no carvão das ruas; espreitar a horta
que o vizinho anda a tricotar e o vento
lhe desmancha de pirraça; deixar a
chaleira negra em redor do fogão para
um chá que nunca sabemos quando
será – porque a vida dos velhos é curta,
mas imensa; dizer as mesmas coisas
muitas vezes – por sermos velhos e por
serem verdade. Eu não quero ser velha
sozinha, mesmo ao sol, nem quero que
sejas velho com mais ninguém. Vamos
ser velhos juntos nos degraus da casa –
se a chaleira apitar, sossega, vou lá eu; não
atravesses a rua por uma sombra amiga,
trago-te o chá e um chapéu quando voltar.
Maria do Rosário Pedreira
segunda-feira, 13 de maio de 2013
amor & coisas simples
"Aprendi que o sentimento do amor não é mais nem menos forte conforme as idades, o amor é uma possibilidade de uma vida inteira, e se acontece, há que recebê-lo. Normalmente, quem tem ideias que não vão neste sentido, e que tendem a menosprezar o amor como factor de realização total e pessoal, são aqueles que não tiveram o privilégio de vivê-lo, aqueles a quem não aconteceu esse mistério."
José Saramago
José Saramago
sexta-feira, 3 de maio de 2013
amor & coisas simples #2
Houve um momento em que decidiu: vou escrever sobre a Maria João?
(...) Se eu escrever "a Maria João" fico acompanhado, ajuda-me a escrever. Já não consigo dissociar-me muito bem dela. Um casal tem uma vida própria. O Julian Barnes perdeu a mulher, que ele adorava, em 38 dias. Ele diz que quando se perde uma pessoa perde-se mais do que isso, perde-se a vida com aquela pessoa. Ela morre e ele fica menos do que meia pessoa. Isto tem um preço enorme. As pessoas cuidadosas, nas relações de namoro, guardam um sítio para onde voltar se tudo correr mal. No meu caso e no dela, não há sitio para voltar.
MEC, em entrevista
(...) Se eu escrever "a Maria João" fico acompanhado, ajuda-me a escrever. Já não consigo dissociar-me muito bem dela. Um casal tem uma vida própria. O Julian Barnes perdeu a mulher, que ele adorava, em 38 dias. Ele diz que quando se perde uma pessoa perde-se mais do que isso, perde-se a vida com aquela pessoa. Ela morre e ele fica menos do que meia pessoa. Isto tem um preço enorme. As pessoas cuidadosas, nas relações de namoro, guardam um sítio para onde voltar se tudo correr mal. No meu caso e no dela, não há sitio para voltar.
MEC, em entrevista
amor & coisas simples #1
Escreveu uma crónica intitulada «O amor é um exagerador». É mesmo?
Sim. É muito estranho querer estar só com uma pessoa da raça humana. O amor é um exagero. Aquela coisa "Como é que é possível, ela gostar dele que é tão horrível?" É uma coisa mágica. Duas pessoas que se encontram e formam uma unidade. Quando se vive assim, tudo é traição: "Ah, estás mais interessado em ler o jornal do que em falares comigo?!" No amor tudo pode ser traição. O amor é uma parada muito alta. Qualquer coisa pequena é uma coisa dramática. O amor é um exagero por isso. É tudo vivido à lupa. Há muita gente que acha de mau gosto. De mau gosto é uma pessoa fingir.
MEC, em entrevista
Sim. É muito estranho querer estar só com uma pessoa da raça humana. O amor é um exagero. Aquela coisa "Como é que é possível, ela gostar dele que é tão horrível?" É uma coisa mágica. Duas pessoas que se encontram e formam uma unidade. Quando se vive assim, tudo é traição: "Ah, estás mais interessado em ler o jornal do que em falares comigo?!" No amor tudo pode ser traição. O amor é uma parada muito alta. Qualquer coisa pequena é uma coisa dramática. O amor é um exagero por isso. É tudo vivido à lupa. Há muita gente que acha de mau gosto. De mau gosto é uma pessoa fingir.
MEC, em entrevista
quinta-feira, 2 de maio de 2013
motes
Ponto de Honra
Desassossego a paixão
espaço aberto nos meus braços
Insubordino o amor
desobedeço e desfaço
Desacerto o meu limite
incendeio o tempo todo
Vou traçando o feminino
tomo rasgo e desatino
Contrario o meu destino
digo oposto do que ouço
Evito o que me ensinaram
invento troco disponho
Recuso ser meu avesso
matando aquilo que sonho
Salto ao eixo da quimera
saio voando no gosto
Sou bruxa
Sou feiticeira
Sou poetisa e desato
Escrevo
e cuspo na fogueira
Maria Teresa Horta
Desassossego a paixão
espaço aberto nos meus braços
Insubordino o amor
desobedeço e desfaço
Desacerto o meu limite
incendeio o tempo todo
Vou traçando o feminino
tomo rasgo e desatino
Contrario o meu destino
digo oposto do que ouço
Evito o que me ensinaram
invento troco disponho
Recuso ser meu avesso
matando aquilo que sonho
Salto ao eixo da quimera
saio voando no gosto
Sou bruxa
Sou feiticeira
Sou poetisa e desato
Escrevo
e cuspo na fogueira
Maria Teresa Horta
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