Numa Europa cultural viciada em muitos preconceitos anti-americanos, o 66º Festival de Cannes não deixou de atrair novas versões de velhos lugares-comuns contra Steven Spielberg, este ano presidente do júri. Com uma ironia mais ou menos habilidosa, sugeriu-se que, afinal, o autor de A Lista de Schindler teria vindo à Côte d’Azur para, de uma maneira ou de outra, tratar dos seus “negócios”. Nada de novo: em 1975, defender um filme chamado Tubarão dava direito a ser acusado de perigosa aliança com o “imperialismo” (este ano, hélas!, Tubarão foi um dos clássicos exibidos nas sessões de cinema ao ar livre, na praia Macé).
Acontece que, com a cumplicidade dos seus magníficos colegas de júri, Spielberg rubricou uma belíssima prova de amor cinéfilo: por um lado, definindo um palmarés que espelha a fascinante pluralidade da selecção oficial (ficaram grandes filmes de fora, mas era inevitável); por outro lado, através da Palma de Ouro para La Vie d’Adèle, consagrando um objecto que, ao abordar uma história de amor entre duas mulheres, não vacila perante o rigor de um realismo muito francês cuja modernidade persiste. Daí que Spielberg tenha dito que a Palma ia, não para o realizador (tradicional consagrado), mas para “três artistas”: Kechiche e as suas duas admiráveis actrizes, Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux. Kechiche recordou, aliás, que este filme o levou descobrir uma juventude que quer e sabe “viver livremente, exprimir-se livremente e amar livremente”.
Como duas figuras angelicais, Adèle e Léa levam-nos a lidar com as máscaras que a sexualidade sempre envolve. Ou seja: numa Europa que todos os dias tolera a violência pornográfica do Big Brother e seus derivados, foi um cineasta de um pudor muito americano que nos veio ajudar a repensar a ética dos nossos olhares.
João Lopes, aqui
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