Marcha fúnebre (lado B)
É difícil, sim,
conhecer a luz e falhar a sombra.
Tão difícil como beber apenas
uma cerveja e falhar a palavra
apenas
por não gostar de tremoços.
É difícil não termos sido amigas
na adolescência, mas eu nunca tive amigos
adolescentes,
mesmo os que diziam que eram
mentiam: tinham centenas de anos.
É difícil nunca ter ido em grupos,
nunca ter ido às putas, ter ficado
sempre aqui,
aqui assim,
de coração encostado ao verso,
de língua debaixo da linha.
É difícil, sim,
cair no abismo e descobri-lo afinal
sítio confortável. Como é difícil
ler Celan e Pina,
Herberto e Belo,
Szymborska e Clarice,
e acreditar que a fé
se torna intermitente
sempre aqui,
aqui assim,
entre a saliva e os dentes.
É difícil, por isso,
pisar a madeira,
e esperar que a tábua ranja no sítio certo
da memória.
Tão difícil como o próximo copo ser a única esperança.
Menos difícil porém
do que ter sido mãe
órfã de pai, avós e gatos,
órfã rodeada de órfãos
por todos os lados. Água
rodeada de mar por todos os lados.
É difícil cumular factos:
ter sido eu
a ensinar-te a ler aos 50 anos,
ter sido eu
a falhar-te a leitura da morte aos 90 anos,
ter sido eu
a sobreviver-te, sobrevivente aos 30 anos.
Ter sido eu:
tão difícil quanto ser árvore
quando o tempo não está para colheitas.
Tão difícil quanto ter
medo de cães,
alergia a gatos,
e restar:
uma andorinha para caçar.
É difícil, enfim, sonhar
que a cerveja se bebeu
na companhia do poeta.
Como é difícil acreditar que o poeta perdeu
na carruagem os poemas. E os poemas
sempre aqui,
aqui assim,
rentes ao chão. Apenas.
Gostaria – muito, tanto – de.
Gostaria assim – com gestos largos –
assim tanto de: acreditar que
tudo isto tem banda sonora.
Porém:
para fazer uma canção,
tudo isto trespassado pelo som não chega.
Não chega, não.
É difícil, sim.
Inês Fonseca Santos
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