terça-feira, 30 de abril de 2013
coisas simples
«Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.»
José Saramago
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.»
José Saramago
'semiótica do palavrão'
«Em nenhum outro lugar do país se fala um português tão rico como no Porto. Perdoem-me os bem-falantes de todas as latitudes, mas eu, que já morei em muitas terras, nunca vi acariciar as palavras como no Porto. E não me refiro às camadas cultas. Por mais que isto custe aos lusos doutores, na Invicta, o povo apoderou-se do Verbo. “No Porto?”, pasmará um lisboeta. “Eu quando lá vou só ouço palavrões!”. Precisamente. Esse é um exemplo fascinante. No resto do país, os palavrões são usados em situações extremas, para mostrar desagrado por uma situação, ou para insultar alguém, que pretendemos rebaixar. E, usando-os, rebaixamo-nos a nós próprios também. É para isso que servem: para reduzir à obscenidade.
No Porto, os palavrões não são obscenos: são uma arte e uma filosofia. Não sei se algum linguista analisou alguma vez este fenómeno. Mas valia a pena. Primeiro porque, no Porto, os palavrões são fiéis à sua natureza — são vulgares e ordinários. Não são, como noutras regiões, raros e extraordinários. São de todos, e não de uma elite indecente. Depois, porque servem para exprimir uma sabedoria.
A táctica é esta (e digo-o com todo o respeito e admiração pela terra onde nasci): há um jogo de metáforas, todas elas referentes ao acto sexual, que servem para compreender a vida. É um universo alegórico em que o sexo não é mais do que um exercício utilitarista de dominação e humilhação, uma economia do dar e do receber, um negócio de favores, promessas e cobranças. Visto desta forma, a vida erótica comporta uma panóplia de situações que correspondem a outras tantas da vida em geral.
Atenção, trata-se de um jogo tácito, e não de um machismo empedernido ou um marxismo de caserna. Por exemplo, se se disser que alguém “apanhou no c. e nem piou”, isto significa que foi vítima de um abuso tão descarado que nem teve tempo de protestar. A expressão aplica-se a situações tão variadas como ter pago um preço exagerado num restaurante ou ter sido despedido sem justa causa. Parte do princípio de que o sexo anal é um acto de prazer unilateral, que implica portanto a humilhação do sujeito passivo.
Por outro lado, a expressão “tenho apanhado muito no c.” significa que já sofri muito na vida, pelo que estou preparado para grandes desafios. Uma expressão equivalente mas talvez ainda um pouco mais amarga é “eu já fiz muitos b.”
Se alguém responder a um pedido ou uma proposta com a frase “na c. da tua tia!”, isso significa uma recusa peremptória, como quem diz “isso é que era bom!” ou “isso é o que tu querias!”, numa alusão ao eventual desejo subliminar e inconfessado de ter acesso às partes íntimas de figuras respeitáveis da família. Mas, se a frase for “até rima da c. da tua prima”, significa um sinal de cumplicidade. A simples alteração do grau de parentesco implica uma reviravolta semântica. É todo um jogo de subtilezas. Mais um exemplo: as elocuções “p. que te pariu” ou “filho da p.” são inequivocamente negativas, pois pressupõem que a mãe do interlocutor seria uma trabalhadora do sexo, pelo que o coito que deu origem àquele terá sido, não de amor, mas um acto mercantil. Pelo contrário, dizer “meu grande filho da p.” é um gesto de carinho, talvez por sugerir que o indivíduo em causa, por se ter comportado como um grande filho, merece o respeito e a protecção da sociedade, apesar das circunstâncias pouco auspiciosas em que foi concebido.»
aqui
No Porto, os palavrões não são obscenos: são uma arte e uma filosofia. Não sei se algum linguista analisou alguma vez este fenómeno. Mas valia a pena. Primeiro porque, no Porto, os palavrões são fiéis à sua natureza — são vulgares e ordinários. Não são, como noutras regiões, raros e extraordinários. São de todos, e não de uma elite indecente. Depois, porque servem para exprimir uma sabedoria.
A táctica é esta (e digo-o com todo o respeito e admiração pela terra onde nasci): há um jogo de metáforas, todas elas referentes ao acto sexual, que servem para compreender a vida. É um universo alegórico em que o sexo não é mais do que um exercício utilitarista de dominação e humilhação, uma economia do dar e do receber, um negócio de favores, promessas e cobranças. Visto desta forma, a vida erótica comporta uma panóplia de situações que correspondem a outras tantas da vida em geral.
Atenção, trata-se de um jogo tácito, e não de um machismo empedernido ou um marxismo de caserna. Por exemplo, se se disser que alguém “apanhou no c. e nem piou”, isto significa que foi vítima de um abuso tão descarado que nem teve tempo de protestar. A expressão aplica-se a situações tão variadas como ter pago um preço exagerado num restaurante ou ter sido despedido sem justa causa. Parte do princípio de que o sexo anal é um acto de prazer unilateral, que implica portanto a humilhação do sujeito passivo.
Por outro lado, a expressão “tenho apanhado muito no c.” significa que já sofri muito na vida, pelo que estou preparado para grandes desafios. Uma expressão equivalente mas talvez ainda um pouco mais amarga é “eu já fiz muitos b.”
Se alguém responder a um pedido ou uma proposta com a frase “na c. da tua tia!”, isso significa uma recusa peremptória, como quem diz “isso é que era bom!” ou “isso é o que tu querias!”, numa alusão ao eventual desejo subliminar e inconfessado de ter acesso às partes íntimas de figuras respeitáveis da família. Mas, se a frase for “até rima da c. da tua prima”, significa um sinal de cumplicidade. A simples alteração do grau de parentesco implica uma reviravolta semântica. É todo um jogo de subtilezas. Mais um exemplo: as elocuções “p. que te pariu” ou “filho da p.” são inequivocamente negativas, pois pressupõem que a mãe do interlocutor seria uma trabalhadora do sexo, pelo que o coito que deu origem àquele terá sido, não de amor, mas um acto mercantil. Pelo contrário, dizer “meu grande filho da p.” é um gesto de carinho, talvez por sugerir que o indivíduo em causa, por se ter comportado como um grande filho, merece o respeito e a protecção da sociedade, apesar das circunstâncias pouco auspiciosas em que foi concebido.»
aqui
quarta-feira, 24 de abril de 2013
parábola de uma ida ao supermercado
Fat Kid on a Rollercoaster
N.B. - o puto gordo sou eu a tentar escolher as melhores laranjas; a senhora a rir-se à despregada é a idosa que normalmente está ao meu lado...
terça-feira, 23 de abril de 2013
amor & coisas (que não são assim tão) simples
«Two people shouldn't know each other too well if they want to fall in love. But then maybe they should not fall in love at all.»
Eclipse, 1962
Eclipse, 1962
segunda-feira, 22 de abril de 2013
lambarices
Hot summer nights mid July
When you and I were forever wild
The crazy days, the city lights
The way you'd play with me like a child
[...]
Hot summer days, rock and roll
The way you'd play for me at your show
And all the ways I got to know
Your pretty face and electric soul
[...]
Dear lord when I get to heaven
Please let me bring my man
When he comes tell me that you'll let him in
Father tell me if you can
Oh that grace, oh that body
Oh that face makes me wanna party
He's my sun, he makes shine like diamonds
Lana Del Rey - Young and Beautiful
coisas simples
«They told me that to make her fall in love, I had to make her laugh. But everytime she laughs, I am the one who falls in love.»
Tommaso Ferraris
Tommaso Ferraris
sexta-feira, 19 de abril de 2013
lambarices
Notas para um discurso no futuro próximo
Portugueses,
O Governo, preocupado com o aumento do desemprego, criou legislação que permitiria reduzir a taxa de desemprego em 50 por cento. Era uma medida corajosa que consistia no seguinte: executar, com um tiro na nuca, 500 mil desempregados. Mais uma vez, o tribunal rejeitou a medida por violar aquilo a que os juízes chamam, naquele jargão jurídico impenetrável, a "lei". Como já tem vindo a ser habitual, os tribunais ignoram a situação económica de emergência em que nos encontramos e, alegando mariquices como a conformidade às leis fundamentais do País, impedem que se faça aquilo que tem de ser feito. Essa atitude, como é evidente, bloqueia a acção do Governo. Perante o que se tem visto, parece-me desnecessário sequer colocar à consideração do Parlamento a criação do campo de concentração para reformados, ou o fuzilamento dos professores excedentários, uma vez que é sabido, de antemão, que serão rejeitados pelos tribunais com base num pormenor técnico qualquer.
Aquilo que aconteceu com o Orçamento Geral do Estado, que foi vítima de uma má vontade que nenhum outro documento oficial alguma vez teve de suportar, ainda está bem presente na memória de todos. Ao fim de 50 dias, disseram que o orçamento estava errado. Ao fim de 90, disseram que era ilegal. Não me surpreenderia que, dentro de uma semana ou duas, alguém dissesse que o orçamento era pedófilo. Encontramo-nos neste nível de embirração. Parem de ser picuinhas e deixem-nos governar.
Pelo segundo ano consecutivo, o Tribunal Constitucional chumba artigos do Orçamento de Estado. Estamos perante um vício - e um vício caro, uma vez que são artigos que custam milhares de milhões de euros. Trata-se de um escândalo que os juízes do Tribunal Constitucional se permitam provocar um desvio destes nas contas públicas. A única pessoa que está autorizada a provocar desvios colossais nas contas públicas é o sr. ministro das Finanças.
Vivemos tempos difíceis. O sonho de Francisco Sá Carneiro era: um Governo, uma maioria, um Presidente. Eu, como disse há dias Ricardo Araújo Pereira (é mesmo engraçado, aquele rapaz), sonho um pouco mais alto: só me satisfaço se puder governar com um Governo, uma maioria, um Presidente e a Constituição de 1933. Com a que temos neste momento, que vigora há mais de 30 anos e foi aprovada com os votos favoráveis do partido a que presido, descobri agora que é impossível.
O ainda primeiro-ministro,
Pedro Passos Coelho
RAP, aqui
Portugueses,
O Governo, preocupado com o aumento do desemprego, criou legislação que permitiria reduzir a taxa de desemprego em 50 por cento. Era uma medida corajosa que consistia no seguinte: executar, com um tiro na nuca, 500 mil desempregados. Mais uma vez, o tribunal rejeitou a medida por violar aquilo a que os juízes chamam, naquele jargão jurídico impenetrável, a "lei". Como já tem vindo a ser habitual, os tribunais ignoram a situação económica de emergência em que nos encontramos e, alegando mariquices como a conformidade às leis fundamentais do País, impedem que se faça aquilo que tem de ser feito. Essa atitude, como é evidente, bloqueia a acção do Governo. Perante o que se tem visto, parece-me desnecessário sequer colocar à consideração do Parlamento a criação do campo de concentração para reformados, ou o fuzilamento dos professores excedentários, uma vez que é sabido, de antemão, que serão rejeitados pelos tribunais com base num pormenor técnico qualquer.
Aquilo que aconteceu com o Orçamento Geral do Estado, que foi vítima de uma má vontade que nenhum outro documento oficial alguma vez teve de suportar, ainda está bem presente na memória de todos. Ao fim de 50 dias, disseram que o orçamento estava errado. Ao fim de 90, disseram que era ilegal. Não me surpreenderia que, dentro de uma semana ou duas, alguém dissesse que o orçamento era pedófilo. Encontramo-nos neste nível de embirração. Parem de ser picuinhas e deixem-nos governar.
Pelo segundo ano consecutivo, o Tribunal Constitucional chumba artigos do Orçamento de Estado. Estamos perante um vício - e um vício caro, uma vez que são artigos que custam milhares de milhões de euros. Trata-se de um escândalo que os juízes do Tribunal Constitucional se permitam provocar um desvio destes nas contas públicas. A única pessoa que está autorizada a provocar desvios colossais nas contas públicas é o sr. ministro das Finanças.
Vivemos tempos difíceis. O sonho de Francisco Sá Carneiro era: um Governo, uma maioria, um Presidente. Eu, como disse há dias Ricardo Araújo Pereira (é mesmo engraçado, aquele rapaz), sonho um pouco mais alto: só me satisfaço se puder governar com um Governo, uma maioria, um Presidente e a Constituição de 1933. Com a que temos neste momento, que vigora há mais de 30 anos e foi aprovada com os votos favoráveis do partido a que presido, descobri agora que é impossível.
O ainda primeiro-ministro,
Pedro Passos Coelho
RAP, aqui
'e eu com o melhor sorriso que sei agradeço tudo'
Abres a bolsinha de lona
Abres a bolsinha de lona
cheia de postais ilustrados: as tuas
índias inevitáveis, imagens com velhos
comboios parados - as coisas que
me ensinas desses lugares, é pouco o que
conheces, mas gostas tanto. Olho
enquanto falas e penso às vezes que
uma boca é a melhor forma de
recordar outra, assim um estupro
sereno.
No mesmo sentido que nós a luz vem
vagueando timidamente. Dói-me
o corpo, como depois de uma sova,
de mãos nos bolsos, um filme muito
parado e um rio cansado em fundo.
O preguiçoso desenho de ruas debaixo
de um rosa escuro, de trovoada,
na bulha do silêncio a urze rebentando
nos muros entre as frases já sem amor,
a passagem comida por urtigas,
flores carnudas, músculos de cor
e uma água lenta que diz baixinho
esta doce tensão.
Viemos de uma adolescência inquieta
e deslocada, hoje já somos de fins de tardes
e cantigas populares, dos trocos para a cerveja,
das pequenas desobediências e desse verso
malcriado, deitando a língua de fora
à filinha dos beatos, os da lírica, sempre
tão chatos.
Cada vez penso mais, cada vez sinto
menos. As mãos insuficientes esfregando-se
no último calor da tarde. Não sei onde
vamos. Junto à estrada um miúdo
com uma cana - de um lado para
o outro e o assobio antes de cada golpe -
decepando girassóis na hora em que
a sombra lhes dobra a cabeça.
Alguns passos, aquela cumplicidade
entre estranhos, frouxos e anémicos
à entrada de um café. Sobras de
um verão perdido, outro que virá
sobre estas mesas poucas. E há um
com uma canção distraída nos lábios
e os sumidos acordes de uma viola toda
podre a ronronar-lhe no colo.
Tudo me parece tão ameaçado.
A noite foi espessando aos poucos,
por cima de nós um punhado de astros
alinham-se lá no seu acaso
e tu apontas logo uma constelação,
contas-me sobre um mito qualquer
e eu com o melhor sorriso que sei
agradeço tudo.
Diogo Vaz Pinto
Abres a bolsinha de lona
cheia de postais ilustrados: as tuas
índias inevitáveis, imagens com velhos
comboios parados - as coisas que
me ensinas desses lugares, é pouco o que
conheces, mas gostas tanto. Olho
enquanto falas e penso às vezes que
uma boca é a melhor forma de
recordar outra, assim um estupro
sereno.
No mesmo sentido que nós a luz vem
vagueando timidamente. Dói-me
o corpo, como depois de uma sova,
de mãos nos bolsos, um filme muito
parado e um rio cansado em fundo.
O preguiçoso desenho de ruas debaixo
de um rosa escuro, de trovoada,
na bulha do silêncio a urze rebentando
nos muros entre as frases já sem amor,
a passagem comida por urtigas,
flores carnudas, músculos de cor
e uma água lenta que diz baixinho
esta doce tensão.
Viemos de uma adolescência inquieta
e deslocada, hoje já somos de fins de tardes
e cantigas populares, dos trocos para a cerveja,
das pequenas desobediências e desse verso
malcriado, deitando a língua de fora
à filinha dos beatos, os da lírica, sempre
tão chatos.
Cada vez penso mais, cada vez sinto
menos. As mãos insuficientes esfregando-se
no último calor da tarde. Não sei onde
vamos. Junto à estrada um miúdo
com uma cana - de um lado para
o outro e o assobio antes de cada golpe -
decepando girassóis na hora em que
a sombra lhes dobra a cabeça.
Alguns passos, aquela cumplicidade
entre estranhos, frouxos e anémicos
à entrada de um café. Sobras de
um verão perdido, outro que virá
sobre estas mesas poucas. E há um
com uma canção distraída nos lábios
e os sumidos acordes de uma viola toda
podre a ronronar-lhe no colo.
Tudo me parece tão ameaçado.
A noite foi espessando aos poucos,
por cima de nós um punhado de astros
alinham-se lá no seu acaso
e tu apontas logo uma constelação,
contas-me sobre um mito qualquer
e eu com o melhor sorriso que sei
agradeço tudo.
Diogo Vaz Pinto
quinta-feira, 18 de abril de 2013
motes
Homens sem Mulheres
Durante meses ou anos (ou,
em todo o caso, um múltiplo
de semanas) trazia debaixo
do braço, com os livros da lei,
Men Without Women,
de Ernest Hemingway.
Hábito exterior de mostrar
leituras ou de passear,
como legendas, frases sintéticas
e duras, não o tolerava
nos outros, mas só em mim,
na minha edição velha
e laranja da Penguin.
Eu não queria que o livro
terminasse, e o plural
do título era um disfarce.
Mestre
Durante meses ou anos (ou,
em todo o caso, um múltiplo
de semanas) trazia debaixo
do braço, com os livros da lei,
Men Without Women,
de Ernest Hemingway.
Hábito exterior de mostrar
leituras ou de passear,
como legendas, frases sintéticas
e duras, não o tolerava
nos outros, mas só em mim,
na minha edição velha
e laranja da Penguin.
Eu não queria que o livro
terminasse, e o plural
do título era um disfarce.
Mestre
quarta-feira, 17 de abril de 2013
a propósito
O vestido de verão
Os olhos amadurecidos na borda
de um desfiladeiro, os dois
soltando-se com calma. Assim,
lê-me mais baixo, quase sem querer
e os lábios que tremam se tiver
que ser, aliviando as sílabas
mais carnudas de algumas das
palavras.
Setembro perde-se sem interesse,
não são muitos, dois, três cafés
e uma gente demorada a meio
da tarde. Esta luz agora crua e lerda
que nos desfeia
e serve de fracas impressões.
Lá fora
árvores entorpecidas de jardins
que podiam não existir, ruas que levam
por um suave desencanto
e animais desses
de beira da estrada. As flores
de macieira que uma brisa cheira
e imita, ou a pancada seca dos frutos
atiçados pelo vento: rolam
por um bocado no solo
e depois
ficam-se ali, a apodrecer de doçura,
sobre a breve resistência de um
desejo. E o silêncio.
Só o espaço que vai da boca
a cada um deles.
Neste quarto a janela sobre
um pátio aonde vem muito tempo
sem nada, sombras só fugindo
umas das outras. A chuva sobe
os carreiros e ensopa o que
pode.
Longe troveja, dá-me a vontade
de escrever. Sem respirar mais fundo,
ir só apanhando as coisas do chão.
Se precisar uso o carrinho
de mão – não é vermelho,
é verde este –,
sobre ele umas quantas pinhas
e agulhas do velho pinheiro manso,
vão ajudar a começar o fogo.
Este é ainda um acto delicado.
Mesmo as coisas vêm por elas,
se as chamar. Como se
em cada nome houvesse um fio,
eu só puxo.
Dobro um vestido
de verão que ficou na corda – cores
cheias ainda, dias inteiros. Sei que
a certa altura apanhou
umas ameixas bravas de um
arbusto, e provou uma,
cuspindo o caroço.
Vejo-a inclinando-se de novo
sobre o tanque da roupa,
esfregando suavemente a nódoa
que deixou: manchas imprecisas,
um odor confuso.
A própria linha do corpo, de costas,
com os ombros riscando o que sente
e que não vou conseguir ler.
Já muito pouco resta
do tempo em que éramos mais
e nos ficávamos a olhar, a voz seca
antes de lhe tirarmos a pele, e as mãos
esmagadas sob uma frase que vinha
e cercava vagarosamente
as sensações mais vulgares.
Agora só uma ausência
do tamanho a que a noite
chega, uns olhos negros
que dificilmente se esquecem.
Diogo Vaz Pinto
Os olhos amadurecidos na borda
de um desfiladeiro, os dois
soltando-se com calma. Assim,
lê-me mais baixo, quase sem querer
e os lábios que tremam se tiver
que ser, aliviando as sílabas
mais carnudas de algumas das
palavras.
Setembro perde-se sem interesse,
não são muitos, dois, três cafés
e uma gente demorada a meio
da tarde. Esta luz agora crua e lerda
que nos desfeia
e serve de fracas impressões.
Lá fora
árvores entorpecidas de jardins
que podiam não existir, ruas que levam
por um suave desencanto
e animais desses
de beira da estrada. As flores
de macieira que uma brisa cheira
e imita, ou a pancada seca dos frutos
atiçados pelo vento: rolam
por um bocado no solo
e depois
ficam-se ali, a apodrecer de doçura,
sobre a breve resistência de um
desejo. E o silêncio.
Só o espaço que vai da boca
a cada um deles.
Neste quarto a janela sobre
um pátio aonde vem muito tempo
sem nada, sombras só fugindo
umas das outras. A chuva sobe
os carreiros e ensopa o que
pode.
Longe troveja, dá-me a vontade
de escrever. Sem respirar mais fundo,
ir só apanhando as coisas do chão.
Se precisar uso o carrinho
de mão – não é vermelho,
é verde este –,
sobre ele umas quantas pinhas
e agulhas do velho pinheiro manso,
vão ajudar a começar o fogo.
Este é ainda um acto delicado.
Mesmo as coisas vêm por elas,
se as chamar. Como se
em cada nome houvesse um fio,
eu só puxo.
Dobro um vestido
de verão que ficou na corda – cores
cheias ainda, dias inteiros. Sei que
a certa altura apanhou
umas ameixas bravas de um
arbusto, e provou uma,
cuspindo o caroço.
Vejo-a inclinando-se de novo
sobre o tanque da roupa,
esfregando suavemente a nódoa
que deixou: manchas imprecisas,
um odor confuso.
A própria linha do corpo, de costas,
com os ombros riscando o que sente
e que não vou conseguir ler.
Já muito pouco resta
do tempo em que éramos mais
e nos ficávamos a olhar, a voz seca
antes de lhe tirarmos a pele, e as mãos
esmagadas sob uma frase que vinha
e cercava vagarosamente
as sensações mais vulgares.
Agora só uma ausência
do tamanho a que a noite
chega, uns olhos negros
que dificilmente se esquecem.
Diogo Vaz Pinto
terça-feira, 16 de abril de 2013
segunda-feira, 15 de abril de 2013
coisas simples
«O mais grave no nosso tempo não é não termos respostas para o que perguntamos - é não termos já mesmo perguntas.»
Vergílio Ferreira
Vergílio Ferreira
coisas simples
«I believe that fantasy in the meaning of imagination is very important. We shouldn’t stick too close to everyday reality but give room to the reality of the heart, of the mind and of the imagination. Those things can help us in life.»
Hayao Miyazaki
Hayao Miyazaki
sexta-feira, 12 de abril de 2013
quinta-feira, 11 de abril de 2013
quarta-feira, 10 de abril de 2013
com as devidas adaptações
Da saudade
«Há alguns anos, sentado à mesa de um restaurante em Bratislava, enquanto tentava, devo dizer que sem grande sucesso, apreciar uma espécie de crepe, recheado com algo levemente parecido a fígado, falou-me um turco, estudante de Português, sobre a palavra da nossa língua que mais apreciava: saudade.
Antes e depois disso, por outras vezes, diferentes pessoas reforçaram a ideia de que há na “saudade” portuguesa algo que a torna singular. Esse jeito de sentir, às vezes chorado, tem tudo a ver com a forma de ser português.
Julgava-nos sozinhos (a nós e aos galegos, segundo a não muito confiável Wikipedia) na descrição una do “sentir só”. Descobri, contudo, no crioulo de Cabo Verde o equivalente “sodade”, cantado por Cesária, na morna em que recorda “nha terra Sao Nicolau” (“minha terra, São Nicolau”).
Saudade, ou “sodade”, no dizer das ilhas, tem tudo a ver com a condição de emigrante a que me referia na última crónica.
Quando se escolhe (ou se é obrigado a escolher) viver fora, decide-se estar sempre longe. Longe de casa (até que a nova se torne nossa), da família, que passamos a ver apenas de vez em quando e não sempre que nos apetece, dos amigos, que muitas vezes se perdem nas horas de voo, e das pequenas coisas que faziam parte da rotina que, tantas vezes, maldissemos.
Em vivendo longe, aprendemos a dar valor a coisas que nos passavam ao lado, até por as tomarmos como garantidas.
Por mais distantes que estejamos de Portugal, não tanto pela geografia como pelas emoções, não deixamos de levantar a cabeça quando vemos uma bandeira ou de aumentar o volume do rádio, ainda que apenas por alguns segundos, se passa aquela canção.
Não sou nada nostálgico, e no dia-a-dia irrito-me muito mais do que me comovo com as portugalidades (e também por esse sentido critico, de quem nunca está bem como está, sou português), mas percebi o que significa essa palavra que, mesmo sem darmos conta, trazemos connosco, gravada na genética.
Hoje em dia, na melhor das hipóteses, vejo os meus pais uma vez por ano — e nunca no Natal, porque as passagens são demasiado caras. Sei que o tempo está a passar e que cada dia que não estamos juntos é um dia a menos que temos para estar. Sinto, por isso, saudade do cliché dos almoços de domingo.
Não vejo a minha afilhada crescer. Deixei-a criança e hoje está praticamente da minha altura. Tenho por isso saudade de a ver tornar-se mulher. Desde que emigrei, já perdi casamentos, funerais, aniversários, reuniões mais ou menos felizes. Tenho uma história para contar que, cada vez mais, se descruza do caminho das pessoas de sempre.
Saudade é uma coisa que trazemos connosco. Uma palavra que nos dias maus nos faz querer voltar, mas que nos dias bons, porque nela se guarda confiança, nos ajuda a recordar o que nos levou a partir.»
Nuno Andrade Ferreira, aqui
«Há alguns anos, sentado à mesa de um restaurante em Bratislava, enquanto tentava, devo dizer que sem grande sucesso, apreciar uma espécie de crepe, recheado com algo levemente parecido a fígado, falou-me um turco, estudante de Português, sobre a palavra da nossa língua que mais apreciava: saudade.
Antes e depois disso, por outras vezes, diferentes pessoas reforçaram a ideia de que há na “saudade” portuguesa algo que a torna singular. Esse jeito de sentir, às vezes chorado, tem tudo a ver com a forma de ser português.
Julgava-nos sozinhos (a nós e aos galegos, segundo a não muito confiável Wikipedia) na descrição una do “sentir só”. Descobri, contudo, no crioulo de Cabo Verde o equivalente “sodade”, cantado por Cesária, na morna em que recorda “nha terra Sao Nicolau” (“minha terra, São Nicolau”).
Saudade, ou “sodade”, no dizer das ilhas, tem tudo a ver com a condição de emigrante a que me referia na última crónica.
Quando se escolhe (ou se é obrigado a escolher) viver fora, decide-se estar sempre longe. Longe de casa (até que a nova se torne nossa), da família, que passamos a ver apenas de vez em quando e não sempre que nos apetece, dos amigos, que muitas vezes se perdem nas horas de voo, e das pequenas coisas que faziam parte da rotina que, tantas vezes, maldissemos.
Em vivendo longe, aprendemos a dar valor a coisas que nos passavam ao lado, até por as tomarmos como garantidas.
Por mais distantes que estejamos de Portugal, não tanto pela geografia como pelas emoções, não deixamos de levantar a cabeça quando vemos uma bandeira ou de aumentar o volume do rádio, ainda que apenas por alguns segundos, se passa aquela canção.
Não sou nada nostálgico, e no dia-a-dia irrito-me muito mais do que me comovo com as portugalidades (e também por esse sentido critico, de quem nunca está bem como está, sou português), mas percebi o que significa essa palavra que, mesmo sem darmos conta, trazemos connosco, gravada na genética.
Hoje em dia, na melhor das hipóteses, vejo os meus pais uma vez por ano — e nunca no Natal, porque as passagens são demasiado caras. Sei que o tempo está a passar e que cada dia que não estamos juntos é um dia a menos que temos para estar. Sinto, por isso, saudade do cliché dos almoços de domingo.
Não vejo a minha afilhada crescer. Deixei-a criança e hoje está praticamente da minha altura. Tenho por isso saudade de a ver tornar-se mulher. Desde que emigrei, já perdi casamentos, funerais, aniversários, reuniões mais ou menos felizes. Tenho uma história para contar que, cada vez mais, se descruza do caminho das pessoas de sempre.
Saudade é uma coisa que trazemos connosco. Uma palavra que nos dias maus nos faz querer voltar, mas que nos dias bons, porque nela se guarda confiança, nos ajuda a recordar o que nos levou a partir.»
Nuno Andrade Ferreira, aqui
terça-feira, 9 de abril de 2013
lambarices
Real Estate - Wonder Years
já o teledisco é de um filme italiano de 1961, chamado 'Il posto', realizado por Ermanno Olmi.
coisas lapidares
Sou democrata, mas...
«Pedro Passos Coelho não gostou da decisão do Tribunal Constitucional que chumbou quatro normas do Orçamento do Estado de 2013. O seu descontentamento era previsível. O que não se esperava era que o primeiro-ministro usasse quase metade do tempo da comunicação que fez domingo à tarde ao país na sequência da decisão do Tribunal Constitucional para criticar o próprio Tribunal Constitucional.
Começou bem e disse o elementar: "É evidente que o Governo respeita e cumprirá as decisões do Tribunal Constitucional. Não podia ser de outra maneira num Estado de direito democrático que preza as suas instituições."
Mas nos dez longos minutos seguintes, o primeiro-ministro demonstrou justamente o contrário.
Tratou o Tribunal Constitucional como se fosse um parceiro com o qual se discute política ao mesmo nível, de igual para igual, escolhendo - num discurso preparado e escrito - um tom de desqualificação em relação ao mais elevado órgão do poder judicial do país que vai para além do incómodo ou do simbólico.
O primeiro-ministro poderia ter pedido desculpa por ter violado a Constituição (muito improvável, embora fosse do agrado de alguns constitucionalistas) ou poderia ter dito que agira em boa-fé e acreditava que nenhuma norma do seu orçamento era inconstitucional (mas não seria credível). Ou poderia ter optado por falar sobre isso mas pouco, e usar os 18 minutos de antena para dizer o que vai o Governo fazer na sequência do chumbo do Orçamento.
A estratégia do primeiro-ministro foi radicalmente oposta. Sem brilho, num tom punitivo e revanchista, Passos Coelho desfiou a sua longa lista de críticas. Sobre o Tribunal Constitucional não teve uma ou duas coisas a dizer. Teve 15. É este o rol: o Tribunal Constitucional não tem "grande realismo" nem "uma consciência ajuda dos imperativos impostos" pelas actuais circunstâncias; as futuras alternativas "poderão" pôr em causa "valores importantes da Constituição"; a decisão "tem consequências muito sérias para o país"; "torna a posição portuguesa mais frágil" nas negociações com a troika; "introduz incerteza e imprevisibilidade"; "corre em sentido contrário à orientação estratégica de regresso aos mercados"; é "um risco para todo este processo"; "coloca obstáculos muito sérios à execução orçamental de 2013"; "torna problemática a consolidação orçamental para os próximos anos"; deixa a sétima revisão da troika inconcluída; bloqueia a transferência do montante previsto; torna "a vida dos portugueses mais difícil" e "o sucesso da recuperação nacional mais problemático" e, pelo meio, o primeiro-ministro ainda conseguiu deixar a ameaça no ar de que a decisão do Tribunal Constitucional pode vir a contribuir para a saída de Portugal do euro.
Uma coisa é o primeiro-ministro dizer que o Governo está decepcionado com a decisão e que preferia que o Tribunal tivesse aprovado o Orçamento, de modo a que tudo seguisse como previsto.
Outra é transformar num inimigo político o último árbitro do país, fiscal de todos os fiscais. Não se trata de sacralizar o Tribunal Constitucional. Mas a "força dirigente" da Constituição, como dizem com carinho os constitucionalistas, e a decisão dos seus juízes não podem ser questionados como se se tratasse de uma petição popular com muitos assinantes na Internet.
O Tribunal Constitucional não é um entre iguais. Estas são as regras do jogo e não podem ser mudadas com um discurso na televisão. Mais do que se ter revelado como político, Passos revelou o seu entendimento da democracia portuguesa.»
Bárbara Reis, aqui
«Pedro Passos Coelho não gostou da decisão do Tribunal Constitucional que chumbou quatro normas do Orçamento do Estado de 2013. O seu descontentamento era previsível. O que não se esperava era que o primeiro-ministro usasse quase metade do tempo da comunicação que fez domingo à tarde ao país na sequência da decisão do Tribunal Constitucional para criticar o próprio Tribunal Constitucional.
Começou bem e disse o elementar: "É evidente que o Governo respeita e cumprirá as decisões do Tribunal Constitucional. Não podia ser de outra maneira num Estado de direito democrático que preza as suas instituições."
Mas nos dez longos minutos seguintes, o primeiro-ministro demonstrou justamente o contrário.
Tratou o Tribunal Constitucional como se fosse um parceiro com o qual se discute política ao mesmo nível, de igual para igual, escolhendo - num discurso preparado e escrito - um tom de desqualificação em relação ao mais elevado órgão do poder judicial do país que vai para além do incómodo ou do simbólico.
O primeiro-ministro poderia ter pedido desculpa por ter violado a Constituição (muito improvável, embora fosse do agrado de alguns constitucionalistas) ou poderia ter dito que agira em boa-fé e acreditava que nenhuma norma do seu orçamento era inconstitucional (mas não seria credível). Ou poderia ter optado por falar sobre isso mas pouco, e usar os 18 minutos de antena para dizer o que vai o Governo fazer na sequência do chumbo do Orçamento.
A estratégia do primeiro-ministro foi radicalmente oposta. Sem brilho, num tom punitivo e revanchista, Passos Coelho desfiou a sua longa lista de críticas. Sobre o Tribunal Constitucional não teve uma ou duas coisas a dizer. Teve 15. É este o rol: o Tribunal Constitucional não tem "grande realismo" nem "uma consciência ajuda dos imperativos impostos" pelas actuais circunstâncias; as futuras alternativas "poderão" pôr em causa "valores importantes da Constituição"; a decisão "tem consequências muito sérias para o país"; "torna a posição portuguesa mais frágil" nas negociações com a troika; "introduz incerteza e imprevisibilidade"; "corre em sentido contrário à orientação estratégica de regresso aos mercados"; é "um risco para todo este processo"; "coloca obstáculos muito sérios à execução orçamental de 2013"; "torna problemática a consolidação orçamental para os próximos anos"; deixa a sétima revisão da troika inconcluída; bloqueia a transferência do montante previsto; torna "a vida dos portugueses mais difícil" e "o sucesso da recuperação nacional mais problemático" e, pelo meio, o primeiro-ministro ainda conseguiu deixar a ameaça no ar de que a decisão do Tribunal Constitucional pode vir a contribuir para a saída de Portugal do euro.
Uma coisa é o primeiro-ministro dizer que o Governo está decepcionado com a decisão e que preferia que o Tribunal tivesse aprovado o Orçamento, de modo a que tudo seguisse como previsto.
Outra é transformar num inimigo político o último árbitro do país, fiscal de todos os fiscais. Não se trata de sacralizar o Tribunal Constitucional. Mas a "força dirigente" da Constituição, como dizem com carinho os constitucionalistas, e a decisão dos seus juízes não podem ser questionados como se se tratasse de uma petição popular com muitos assinantes na Internet.
O Tribunal Constitucional não é um entre iguais. Estas são as regras do jogo e não podem ser mudadas com um discurso na televisão. Mais do que se ter revelado como político, Passos revelou o seu entendimento da democracia portuguesa.»
Bárbara Reis, aqui
obituário
«As a matter of recorded fact, Thatcher was a terror without an atom of humanity.»
Morrissey
Morrissey
segunda-feira, 8 de abril de 2013
sexta-feira, 5 de abril de 2013
quinta-feira, 4 de abril de 2013
quarta-feira, 3 de abril de 2013
terça-feira, 2 de abril de 2013
coisas simples no regresso
Hans: An eye for an eye leaves the whole world blind, I believe that wholeheartedly.
Billy: No it doesn't. There'll be one guy left with one eye. Hows the last blind guy gonna take out the eye of the last guy left, who's still got one eye! All that guy has to do is run away and hide behind a bush. Gandhi was wrong, it's just that nobody's got the balls to come right out and say it.
Seven Psychopaths
Billy: No it doesn't. There'll be one guy left with one eye. Hows the last blind guy gonna take out the eye of the last guy left, who's still got one eye! All that guy has to do is run away and hide behind a bush. Gandhi was wrong, it's just that nobody's got the balls to come right out and say it.
Seven Psychopaths
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