sexta-feira, 19 de abril de 2013

'e eu com o melhor sorriso que sei agradeço tudo'

Abres a bolsinha de lona

Abres a bolsinha de lona
cheia de postais ilustrados: as tuas
índias inevitáveis, imagens com velhos
comboios parados - as coisas que
me ensinas desses lugares, é pouco o que
conheces, mas gostas tanto. Olho
enquanto falas e penso às vezes que
uma boca é a melhor forma de
recordar outra, assim um estupro
sereno.

No mesmo sentido que nós a luz vem
vagueando timidamente. Dói-me
o corpo, como depois de uma sova,
de mãos nos bolsos, um filme muito
parado e um rio cansado em fundo.
O preguiçoso desenho de ruas debaixo
de um rosa escuro, de trovoada,
na bulha do silêncio a urze rebentando
nos muros entre as frases já sem amor,
a passagem comida por urtigas,
flores carnudas, músculos de cor
e uma água lenta que diz baixinho
esta doce tensão.

Viemos de uma adolescência inquieta
e deslocada, hoje já somos de fins de tardes
e cantigas populares, dos trocos para a cerveja,
das pequenas desobediências e desse verso
malcriado, deitando a língua de fora
à filinha dos beatos, os da lírica, sempre
tão chatos.

Cada vez penso mais, cada vez sinto
menos. As mãos insuficientes esfregando-se
no último calor da tarde. Não sei onde
vamos. Junto à estrada um miúdo
com uma cana - de um lado para
o outro e o assobio antes de cada golpe -
decepando girassóis na hora em que
a sombra lhes dobra a cabeça.

Alguns passos, aquela cumplicidade
entre estranhos, frouxos e anémicos
à entrada de um café. Sobras de
um verão perdido, outro que virá
sobre estas mesas poucas. E há um
com uma canção distraída nos lábios
e os sumidos acordes de uma viola toda
podre a ronronar-lhe no colo.
Tudo me parece tão ameaçado.

A noite foi espessando aos poucos,
por cima de nós um punhado de astros
alinham-se lá no seu acaso
e tu apontas logo uma constelação,
contas-me sobre um mito qualquer
e eu com o melhor sorriso que sei
agradeço tudo.


Diogo Vaz Pinto

2 comentários:

  1. estive a ver outros e, confesso, não achei tanta piada. mas estes dois são, de facto, muito bons.

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