quarta-feira, 17 de abril de 2013

a propósito

O vestido de verão

Os olhos amadurecidos na borda
de um desfiladeiro, os dois
soltando-se com calma. Assim,
lê-me mais baixo, quase sem querer
e os lábios que tremam se tiver
que ser, aliviando as sílabas
mais carnudas de algumas das
palavras.
Setembro perde-se sem interesse,
não são muitos, dois, três cafés
e uma gente demorada a meio
da tarde. Esta luz agora crua e lerda
que nos desfeia
e serve de fracas impressões.

Lá fora
árvores entorpecidas de jardins
que podiam não existir, ruas que levam
por um suave desencanto
e animais desses
de beira da estrada. As flores
de macieira que uma brisa cheira
e imita, ou a pancada seca dos frutos
atiçados pelo vento: rolam
por um bocado no solo
e depois

ficam-se ali, a apodrecer de doçura,
sobre a breve resistência de um
desejo. E o silêncio.
Só o espaço que vai da boca
a cada um deles.

Neste quarto a janela sobre
um pátio aonde vem muito tempo
sem nada, sombras só fugindo
umas das outras. A chuva sobe
os carreiros e ensopa o que
pode.

Longe troveja, dá-me a vontade
de escrever. Sem respirar mais fundo,
ir só apanhando as coisas do chão.
Se precisar uso o carrinho
de mão – não é vermelho,
é verde este –,
sobre ele umas quantas pinhas
e agulhas do velho pinheiro manso,
vão ajudar a começar o fogo.

Este é ainda um acto delicado.
Mesmo as coisas vêm por elas,
se as chamar. Como se
em cada nome houvesse um fio,
eu só puxo.

Dobro um vestido
de verão que ficou na corda – cores
cheias ainda, dias inteiros. Sei que
a certa altura apanhou
umas ameixas bravas de um
arbusto, e provou uma,
cuspindo o caroço.

Vejo-a inclinando-se de novo
sobre o tanque da roupa,
esfregando suavemente a nódoa
que deixou: manchas imprecisas,
um odor confuso.
A própria linha do corpo, de costas,
com os ombros riscando o que sente
e que não vou conseguir ler.

Já muito pouco resta
do tempo em que éramos mais
e nos ficávamos a olhar, a voz seca
antes de lhe tirarmos a pele, e as mãos
esmagadas sob uma frase que vinha
e cercava vagarosamente
as sensações mais vulgares.

Agora só uma ausência
do tamanho a que a noite
chega, uns olhos negros
que dificilmente se esquecem.


Diogo Vaz Pinto

1 comentário: