quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

grandes rebeldes

«Herberto Helder é a prova de que a poesia não perdeu ainda completamente o seu poder de irradiação
Quando aparece um novo livro de Herberto Helder, como aconteceu este ano, o curso habitual do nosso mundo literário, o pequeno sistema que o alimenta e lhe dá forma, interrompe o seu curso, entra em sobressalto e declara o estado de excepção. Foi o que sucedeu com Servidões, objecto de uma corrida especulativa ainda os três mil exemplares da edição única não tinham chegado às livrarias. De repente, toda a ordem editorial e o sistema de comercialização dos livros foram assaltados na sua lógica, até pelas imposições de uma soberania autoral — um exercício olímpico de autonomia e autoridade simbólica do poeta — de carácter intempestivo, isto é, que não coincide exactamente com o seu próprio tempo.

Os motivos do assalto podem ser muito mais profanos do que o objecto que os sustenta, mas valem, pelo menos, como sintoma de um poderoso efeito de Herberto Helder na literatura portuguesa contemporânea. O seu “ofício cantante” traz consigo uma memória da poesia e da figura do poeta que dificilmente imaginávamos que podia ser restaurada e para a qual talvez seja necessário usar uma noção do campo da teologia, que Walter Benjamin reactivou no plano da obra de arte: aura. Acresce que a total ausência do poeta no espaço público mediático é um factor de intensificação da aura.

Vindo do fundo dos tempos, sem deixar de ser profundamente de hoje, a poesia de Herberto Helder nasce de uma experiência anacrónica do tempo histórico, de uma constelação de tempos e geografias diferentes, onde, por exemplo, a poesia mais moderna se encontra com a palavra poética de universos mágicos, ainda não secularizados. Deste modo, ela abre uma perspectiva que não tem nada da continuidade narrativa que subjaz a esta ideia de história. E, por isso, pode constituir um rectificativo ou mesmo uma desautorização destes balanços ritualizados na sua cadência, aptos a criar a falsa aparência de que o tempo se converte imediatamente em história, numa incessante actualização que satisfaz a exigência de novidade — esse traço niilista e decadente.

Em suma: há na obra de Herberto Helder uma razão poética que não coincide com a razão histórica em que estamos mergulhados. E é precisamente esse desajuste que fascina, interrompe e aterroriza. Porque ela situa-se claramente do lado do terror. A força mágica da palavra poética, o estremecimento perante novos universos — diabólicos — de significação, a força da proferição: é a esta experiência que acedem os leitores de Herberto Helder.

Mas Servidões não é o único livro de poesia da lista, nem o seu autor eclipsa os seus contemporâneos. O que prova que a poesia não perdeu ainda completamente o seu poder de irradiação. Obrigada a uma circulação muito mais restrita, ela beneficia no entanto de uma autonomia que as regras do campo literário já não concedem ao romance.

O modo como cada um dos intervenientes na elaboração desta lista entende que, a par de muitas outras incomensurabilidades, há também aquela entre a literatura nacional, por um lado, e as literaturas traduzidas, por outro, determina certamente as escolhas. A lista, pela quantidade de livros portugueses que exibe, mostra que há alguma tendência para considerar separadamente a literatura nacional e não deixar que ela se dilua completamente na massa dos livros traduzidos. De facto, nos últimos anos cresceu de maneira avassaladora a literatura traduzida.

Mas, paradoxalmente, isso não significa que tenha aumentado a diversidade dos géneros e dos tipos de livros e se tenha alargado o leque das literaturas nacionais com presença satisfatória na edição portuguesa. Pelo contrário, ao enorme aumento corresponde um simétrico estreitamento da diversidade dos géneros e das representações nacionais. A literatura de língua inglesa fornece o contingente esmagador dos livros traduzidos, e o que sobra são uns títulos avulsos cuja origem se distribui pelo continente europeu e pelo resto do mundo. Mesmo literaturas com as quais mantivemos ao longo da história um diálogo fecundo e que sempre considerámos mais próximas (a literatura francesa, a literatura espanhola, a literatura italiana, a literatura alemã) não têm hoje qualquer expressão no mercado editorial português.

O fenómeno, sempre crescente, a que temos assistido há mais de uma década pode ser assim descrito: tal como o volume de vendas está cada vez mais concentrado em poucos títulos (o fenómeno do best seller era quase desconhecido em Portugal há 20 anos, enquanto hoje se generalizou) as espécies bibliográficas — sejam elas entendidas segundo o critério dos géneros e formas literárias, sejam elas entendidas do ponto de vista dos temas — e a diversidade linguística diminuíram drasticamente. Os entrepostos de livros em que se transformaram as livrarias só aos mais incautos conseguem esconder que, na verdade, à grande quantidade de títulos novos expostos não corresponde uma real diversidade. A diversidade torna-se mais facilmente encontrável nas poucas e pequenas livrarias independentes que ainda restam, mas que vão sucumbindo em cadeia.

Não há provavelmente mercadoria mais vulnerável ao jogo fraudulento das aparências do que os livros. Por isso, até é possível aparentar uma certa normalidade na edição e no mercado dos livros, quando tudo é anomalia, as regras mais básicas do mercado foram pervertidas e se generalizou uma guerra silenciosa, mas implacável, que condena muitos livros à inexistência ou a uma existência quase clandestina nas livrarias.»


António Guerreiro, aqui, sendo que podem ler um excerto do livro aqui.

Podem ainda escutar os sete primeiros poemas de «Servidões», ditos por Fernando Alves, aqui. Tudo legal, atenção!

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